Como o capitalismo se beneficia de doenças e prejudica o povo
- tribunapopularita
- 23 de jul.
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Nos últimos anos, o sistema capitalista tem se beneficiado cada vez mais com hábitos de consumo prejudiciais à saúde e vícios que permeiam a vida cotidiana de milhões de pessoas: alimentos ultraprocessados, tabaco, bebidas alcoólicas, plataformas de apostas e o uso excessivo de redes sociais. Paralelamente ao lucro concentrado nas grandes corporações desses setores, há um enorme desperdício de dinheiro público e profundos danos ao povo.
José Luiz Santana Jr e Redação | Ouro Preto (MG)

Nos Estados Unidos, maior economia representante do modelo capitalista de produção, estima-se que cerca de 20% do PIB seja proveniente do setor de saúde, ou seja, um valor extraído de doenças - muitas delas decorrentes de vícios e hábitos degenerativos1. Portanto, não é exagero afirmar que a doença é vista como um investimento, no qual o vício desempenha um papel central. Um exemplo claro desse processo é a indústria de bebidas alcoólicas, cujas campanhas publicitárias associam o consumo de álcool ao prazer, relaxamento e entretenimento, sem mencionar seus impactos negativos na saúde, como o alto potencial de dependência e seus efeitos cancerígenos2. Além disso, sugerir moderação no uso de um produto para o qual há comprovações científicas de que não há nível seguro de consumo é bastante contraditório e patético3. O aviso "beba com moderação" serve como uma estratégia para eximir a indústria alcoólica de responsabilidade, sob o pretexto da liberdade de escolha individual. Lógica semelhante é aplicada por empresas de ultraprocessados, tabaco, redes sociais e plataformas de apostas.
Em terras ianques, os custos estatais com o desenvolvimento de doenças ligadas ao espectro da adição são atenuados, já que o país não possui um sistema público de saúde integral e universalizado. Assim, o ônus financeiro recai em cima da população, que paga mais caro por serviços privados de saúde, contribuindo para o crescimento do setor de healthcare, que movimentou cerca de US$ 5 trilhões em 20234. Enquanto a população adoece, empresários e acionistas acumulam fortunas – prova disso é que, em cinco anos, um dos principais ETFs* do setor de saúde nos EUA, o VHT, valorizou-se em mais de 70%5
Capitalismo do vício no Brasil: o sacrifício de recursos públicos em prol do setor privado
Se, nos Estados Unidos, os custos diretos dos vícios recaem majoritariamente sobre o bolso da população, no Brasil a situação se desdobra em mais camadas. Além do impacto financeiro sobre as famílias e dos vários danos materiais e imateriais causados pelas doenças, há ainda os custos para o Estado, considerando que cerca de 71% da população brasileira depende do Sistema Único de Saúde (SUS) 6 . Os gastos públicos com doenças relacionadas ao consumo de ultraprocessados, tabaco, álcool, jogos digitais de azar e uso excessivo de redes sociais acabam alimentando o capital privado e o rentismo, uma vez que muitas dessas empresas são negociadas em bolsas de valores.
Ultraprocessados: crescimento robusto, população adoecida
Esses produtos maquiados de alimento são projetados para viciar por meio do sabor e da praticidade. Ultraprocessados não devem ser denominados como alimentos, pois sua finalidade primordial é o lucro, e não a nutrição. A escalada no consumo desses produtos foi acompanhada pela redução no consumo da chamada comida de verdade, como é o caso do tradicional arroz com feijão, que em 2002 representava 16,5% das aquisições alimentares no estado de Minas Gerais, caindo para 10,8% em 2018, segundo dados da última Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), realizada pelo IBGE. De acordo com o artigo Custo de uma alimentação saudável e culturalmente aceitável no Brasil em 2009 e 2018, publicado na Revista de Saúde Pública da USP, o custo de uma dieta baseada em ultraprocessados representa uma redução de até 50% nos gastos, fator relevante que favorece o consumo desses produtos entre as classes economicamente desfavorecidas. Com preços baixos e amplo acesso, esses produtos disponíveis nas prateleiras de supermercados, postos de gasolinas e até farmácias, ganharam espaço nas últimas décadas, impulsionando gigantes do setor como Coca-Cola, Nestlé e BRF. Paralelamente ao crescimento dessas corporações, o percentual de adultos obesos no Brasil disparou de 5,2% para 22,1% desde os anos 19707. O consumo crescente de ultraprocessados está associado a diversas doenças e mortes prematuras. Um estudo da Fiocruz aponta que o Brasil gasta anualmente pelo menos R$ 10 bilhões com os impactos desse consumo, considerando custos diretos e indiretos no SUS, principalmente com hipertensão, diabetes e obesidade8. Atendendo a burguesia desses setores, entre 2015 e 2024, o Estado concedeu de forma irresponsável, R$ 15 bilhões9 em isenções fiscais para essas empresas, o que representa um verdadeiro contrassenso, já que ele mesmo arca com os danos causados pelo setor.
Álcool: lucro e leviandade sem moderação
Na lista das privilegiadas pelo fisco está a AmBev, uma das maiores produtoras de bebidas alcoólicas do Brasil, que recebeu R$ 528 milhões em isenções fiscais entre 2015 e 2024, enquanto seu lucro líquido no mesmo período foi de aproximadamente R$ 127 bilhões10. A título de curiosidade, segundo relatório do IPC Maps, o gasto da população mineira com o consumo de bebidas alcoólicas atingiu a cifra de R$ 3,7 bilhões em 2024, conquistando a medalha de prata nesse quesito — atrás apenas do estado de São Paulo.
Em contrapartida, o Estado gasta anualmente cerca de R$ 18 bilhões com os impactos do consumo de álcool11. O álcool é uma substância altamente tóxica, categorizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como cancerígena nível I (grupo de substâncias com maiores relações com o desenvolvimento de câncer) e responsável por mais de 200 doenças e lesões12. Mesmo assim, a indústria etílica e o Estado mantêm uma postura conivente, promovendo o consumo moderado de uma substância que compromete a capacidade de tomada de decisões e pode gerar dependência química.
Tabaco: a chama enfraquece, mas os gastos continuam
Ao contrário do álcool, o tabaco perdeu seu prestígio publicitário ao longo do tempo, especialmente com as restrições impostas por leis antifumo e elevação de tributos. No entanto, os empresários do tabaco encontraram formas de driblar essas limitações, diversificando investimentos em setores igualmente viciantes, como os alimentos ultraprocessados, visando exclusivamente à manutenção de lucros13. Mesmo com a elevação tributária sobre o cigarro, o Brasil gastou R$ 153,5 bilhões com os impactos do tabagismo em 2022, enquanto arrecadou apenas R$ 9 bilhões em impostos derivados do setor14. Ou seja, para cada R$ 1 bilhão arrecadado, o país gasta R$ 17 bilhões com os prejuízos causados pelo tabagismo, desmistificando o argumento de que a venda de cigarros traz benefícios econômicos para o Estado.
Redes sociais e apostas: capturando atenção e dinheiro.
A população mundial conectada passa cerca de 12 bilhões de horas por dia nas redes sociais14. Nesse contexto, situado no modelo capitalista ultraprodutivista, horas são convertidas em dólares, onde algoritmos são projetados para maximizar o engajamento e a exposição a anúncios- principal fonte de receitas das redes sociais, convertendo tempo de uso em lucro. O grupo Meta, controlador do Facebook, Instagram e WhatsApp, viu seu valor de mercado crescer cerca de 1.400% desde 2012, quando abriu capital na bolsa de valores, época em que era conhecido apenas como Facebook15.
Apesar da falta de estudos sobre o impacto financeiro do uso excessivo de redes sociais no sistema de saúde pública, há evidências de que ele contribui para o desenvolvimento de transtornos como depressão, ansiedade, baixa autoestima, nomofobia e FOMO**. Logo, quanto mais pessoas adoecidas, maiores os custos para o SUS. Essa dinâmica de adoecimento da população reitera a lógica neoliberal, que sacrifica recursos públicos para fomentar os lucros de grandes corporações privadas, conectadas ao rentismo pela estrutura do mercado de capitais.
Além disso, a exposição a plataformas de apostas online via redes sociais, que exploram mecanismos semelhantes aos da dependência química, compromete a renda de muitas famílias, causando endividamento e impactando outros setores da economia. O setor de varejo, por exemplo, perdeu cerca de R$ 103 bilhões devido ao redirecionamento dos gastos para apostas16.
Regulação com estratégia preventiva e promoção de justiça social
Para garantir que os recursos públicos sejam utilizados de forma eficiente para atender às reais necessidades da população e promover seu bem-estar, o Estado deve deixar de atuar como um galpão de negócios das grandes corporações, que desviam investimentos potenciais de políticas públicas e aprofundam a desigualdade social, para ser de fato uma estrutura de defesas dos interesses da população.
Possíveis soluções para reduzir os gastos do Estado com problemas de saúde decorrentes do consumo de produtos e hábitos degenerativos devem incluir medidas de prevenção, regulação e promoção do bem-estar coletivo. Entre as principais ações, destacam-se: restrição rigorosa de propagandas desses produtos, aumento de impostos sobre itens nocivos à saúde – incluindo taxação de dividendos , com destinação dos recursos ao SUS e a programas preventivos. Além disso, a regulamentação das redes sociais deve limitar conteúdos que incentivem o seu uso excessivo, e apostas voltadas ao público vulnerável devem ser proibidas.
Já que, na lógica das planilhas e dos lucros projetados, doenças e a perda de vidas já não sensibilizam, espero que os números frios apresentados no texto provoquem um mínimo de reflexão sobre os prejuízos e máculas que essas empresas deixam no tecido social.
Por fim, o enfraquecimento da saúde física e mental da população é um projeto das elites capitalistas. Essa dinâmica não apenas favorece a manutenção da concentração de riqueza nas mãos dos grandes conglomerados, mas também dificulta a organização social e a mobilização popular rumo ao socialismo, para que possamos organizar a produção e transitar para um Estado Brasileiro controlado pelos Trabalhadores, e não controlado pelos donos do mercado e por esse Estado que estão favorecendo a reprodução das desigualdades inerentes ao capitalismo.
Referências
* Um ETF (Exchange Traded Fund) é um fundo de investimento negociado na bolsa de valores, combinando características de ações e fundos de investimento. Ele reúne um conjunto de ativos, como ações e títulos. No caso do VHT, os ativos adquiridos são, principalmente, ações do setor de saúde nos EUA.
** Transtornos relativos ao medo de ficar desconectado e de perder a atualização ou ficar fora de um evento, respectivamente.
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